quarta-feira, 28 de março de 2012

Tudo muda

Muda e muda mesmo. E acho que seria tão melhor para todos se todos soubessem disso... e seria tão melhor para todas se todas se permitissem isso...

Estar fabricando um ser humano não é qualquer coisa. Muito pelo contrário, é uma grande coisa! A Carol disse que quando estava grávida se sentia a pessoa mais importante do mundo. Andava na rua e pensava "pessoal, olha só o que está acontecendo aqui!". Ótimo resumo da ópera!

Quando eu era uma reles mortal olhava com certo desdém as "frescuras de grávida". É que eu nunca fui do estilo "mulherzinha", principalmente no quesito físico... sou bem mais pra moleca do que pra mulherzinha (sim, tenho minhas manhas, mas se tem coisa que gosto de deixar entre quatro paredes são minhas manhas!).

Só que agora tudo mudou. Estou mole. E sabe o que é "pior"? Estou mole e não faço a menor questão de não estar mole! Não quero fazer força, sento a qualquer oportunidade (se der pra deitar, melhor ainda!) e fico sem fazer nada quase que de consciência tranquila.

Bem, isso é o de menos. Existem coisas profundas que mudam também. Os quereres mudam, as crenças mudam, as prioridades mudam. A primeira reação é tentar negar ou não enxergar essas mudanças; é tentar levar a vida como se nada tivesse mudado. Mas peraí: como assim "se nada tivesse mudado?!". TUDO mudou!

Antes, quando eu era uma reles mortal, admirava as grávidas que trabalhavam durante toda a gestação. Pensava comigo "claro, gravidez não é doença, tem que trabalhar mesmo!". Agora o que sinto é indignação contra o sistema e uma peninha dessas mulheres "poxa, ela está grávida! Quer trabalho mais pesado e nobre do que esse?".

Mas não vou levantar nenhuma bandeira... preguiiiiiiiiiiiiiiiiça...

Só sei que estou aqui na minha toquinha, desligando um pouco o "célebro", deixando instintos e vontades aparecerem, esquecendo pré-conceitos e nem me preocupando em elaborar novos.

E vou também me despedindo aos poucos dessa Carolina que você conhece... despeça-se também... ela está indo embora... vou sentir saudade... [bocejo] mas depois eu penso nisso [outro bocejo]...

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz...

Ah, constato alegre que ainda preservo a "mania" de pensar em espanhol. Quando reli o título da postagem foi automático: Todo cambia ;) Perfeito! Cada verso... tem horas que eu penso que não preciso escrever nada, é só escolher uma música!


Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
Cambia todo en este mundo
Cambia el clima con los años
Cambia el pastor su rebaño
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño
Cambia el mas fino brillante
De mano en mano su brillo
Cambia el nido el pajarillo
Cambia el sentir un amante
Cambia el rumbo el caminante
Aúnque esto le cause daño
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño
Cambia todo cambia
Cambia el sol en su carrera
Cuando la noche subsiste
Cambia la planta y se viste
De verde en la primavera
Cambia el pelaje la fiera
Cambia el cabello el anciano
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño

Pero no cambia mi amor
Por mas lejo que me encuentre
Ni el recuerdo ni el dolor
De mi pueblo y de mi gente


Lo que cambió ayer
Tendrá que cambiar mañana
Así como cambio yo
En esta tierra lejana


Cambia todo cambia



sexta-feira, 23 de março de 2012

XVIII - Ditos populares

Vox populi, vox dei

Se a voz do povo é a voz de deus, o que dizer da voz do Chico Buarque? Entendamos aqui que não se trata da voz física enquanto reverberação das cordas vocais - se fosse esse o caso eu citaria a voz do Milton Nascimento.

O arrodeio é pra falar de uma música que eu adoro e que me foi trazida hoje pela inspiração de um amigo ao recomendar trocar o certo pelo duvidoso. Adoro os ditos populares, mas neles mesmo há um preceito moderador: se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia!

Só que os generosos dão! E o Chico é muito generoso (como também o são Milton, Gil, Caetano e todos os compositores e compositoras do nosso vasto e rico cancioneiro).

Segue a música:


Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança
Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar
Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio o vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade
Ah, sim... o que isso tem a ver com maternidade? Tire suas próprias conclusões...

domingo, 18 de março de 2012

XVII - Relato de parto: Carol Mendes

Se você conhece o Aralume, "pai" desse blog, certamente conhece a Carol e a Clara. E é com muita alegria e emoção que O Filho do Aralume recebe seu primeiro relato de parto, esse parto tão especial, dessas mulheres tão especiais. Ontem a Clara completou 1 ano e 9 meses e foi bem às vésperas dessa data que o relato saiu... como diz a autora, "fiquei quase dois anos parindo".

Ao ler esse relato, ficou muito claro pra mim que a tal "dor do parto", que causa tanto medo em tantas mulheres, é muito mais profunda e forte do que aquela das contrações... e pra essa não há anestesia que dê jeito. Mas, por outro lado, quem tem força e coragem de encará-la tem nas mãos uma ferramenta poderosíssima de cura, transformação e evolução.

Nessa temática tenho três desejos para todas as futuras mães:
1. Que tenham a lucidez de entender que possuem essa ferramenta preciosa e rara (quantas vezes você acha que vai parir na vida?!);
2. Que tenham força e coragem para mergulhar fundo em suas dores e medos;
3. Que tenham amparo para subir à superfície e ver sua imagem refletida no espelho das águas profundas da transformação.


Confissão de um parto,
relato de parto,
ou o dia em que eu entendi meu parto

O parto da minha filha foi a experiência mais transformadora da minha vida. Eu penso em tudo o que vivi e agradeço por esse momento todos os dias, mas ainda havia algo em mim que precisava ser esclarecido.

Minha filha, Clara, nasceu há um ano e nove meses e durante todo esse tempo fiz mentalmente inúmeros relatos do meu parto. No entanto, havia algo que me impedia de escrever, algo que eu não entendia e que portanto, não poderia ser contado. Só agora esse relato pode acontecer.

Clara nasceu em casa no dia 17 de junho de 2010, linda, saudável e tranquila. Tive meu sonhado PD [Parto Domiciliar], mas fui transferida 6 horas após o seu nascimento para o hospital, eu não conseguia terminar o parto, minha placenta estava retida e eu estava com hemorragia, era essa parte que eu insistia em contar apenas como uma fatalidade e que não me convencia.

Engravidei no susto, chorei dois dias e logo depois disso entrei em uma conexão profunda e transformadora com a minha filha. Eu já sabia que era uma menina e já sabia que eu queria parir, eu queria, simples assim. Havia em mim o acesso a uma essência de fêmea, de mulher selvagem, eu olhava para aquele corpo se arredondando, minha filha crescendo dentro de mim e me enchia de uma força que eu nunca tinha imaginado. A maternidade tem fortalecido essa sensação a cada dia, mas eu posso ver claramente como tudo isso começou a brotar.

Eu já conhecia o caminho das pedras pela história de amigos próximos que viveram um parto humanizado e por observar a realidade de cesáreas de quase todos ao meu redor. Passei por duas médicas que não eram capazes de me dar o que eu queria, comecei a frequentar o Gama, conheci a Betina, mergulhei nas leituras e na lista da Maternas e encontrei meu caminho.

Minha maior força nesse processo foi conhecer a minha fragilidade, eu sabia que precisava de apoio e de boas condições para conseguir parir. Mas embora eu já estivesse cercada do apoio que eu precisava, eu sabia que precisava me enfrentar, eu era minha maior ameaça. Eu conhecia como ninguém a minha dor, o meu medo e a minha insegurança. Só eu sabia o tamanho do medo e da dor que existem dentro de mim e que o parto seria o encontro garantido com tudo isso. Não era o medo da dor do parto, era o medo da minha dor. Eu duvidava de mim todos os dias e sentia medo.

Foi o Marcelo, meu amor e companheiro que sugeriu um PD pela primeira vez. Ele queria muito participar efetivamente desse nascimento e proporcionar um ambiente acolhedor e respeitoso para mim e para a chegada da nossa filha. Eu tinha todos os bons motivos para escolher um PD, mas havia um outro, eu sabia que em casa a chance de conseguir ter um parto natural era muito maior e eu precisava das condições mais propícias para aumentar as minhas chances. Eu queria esse parto para a minha filha e para mim.

Embora duvidasse de mim todos os dias, eu afirmava, repetia e contava a todos que ia ter um PN [Parto Natural] e que ia ser em casa. Fui criando uma espécie de verdade, aquela crença de criança que inventa a história e começa a acreditar nela, à medida que eu ia afirmando e contado meu parto eu esperava que ele fosse se tornando mais real. Eu contava esse parto, imaginava, sonhava e sentia medo. Tudo junto, todos os dias.

A gravidez foi maravilhosa, eu me sentia plena enquanto aquela barriga crescia e minha filha ia se preparando para nascer, eu acessava através do meu corpo e de toda essa vida que em mim habitava o contato com o sagrado e com a mulher em mim, uma alegria inexplicável.

No dia 16 de junho (eu estava completando 38 semanas) acordei pela manhã, eram quase 10 horas, sentindo algo parecido com  uma cólica. Fui até o banheiro, vi o tampão e comecei a sentir dor de barriga. Eu sabia que meu TP [Trabalho de Parto] estava começando, e dentro de mim já tinha certeza que minha filha nasceria em breve. Nosso encontro estava próximo.

Liguei para a Betina e contei o que estava sentindo, eu nunca havia tido contrações na gravidez, perguntei se era sinal de TP. Ela confirmou, mas disse para eu ficar tranquila, podia demorar para engrenar. Disse que era para descansar e levar vida normal. Eu disse que queria andar com o meus cachorros (eu sabia que eles ficariam  sem andar um tempo comigo depois do nascimento da Clara e queria aproveitar), e ela, logicamente disse que eu podia andar a vontade. Sai para a primeira caminhada do dia, eu, três cachorros, sendo um meu  Rotweiller, minha barriga, as contrações, minha ansiedade e alegria, e claro, o medo, meu grande companheiro.

Liguei para o Marcelo e avisei que o TP tinha começado. Ele ficou em pânico e me perguntava como assim, dizia que ainda estava cedo (a gente não esperava um parto com 38 semanas) e por fim falou nervoso que ele ainda não estava preparado. Eu sabia que ele só estava nervoso, que ia estar lá comigo, o companheiro de sempre, mas na hora eu não sabia se batia nele, se chorava ou se ria. 

Almocei e liguei para a minha cunhada, a Carol. Ela ia fotografar meu parto e estava em Itu, por isso precisava ser avisada meio logo. Expliquei que o TP tinha começado, mas que podia demorar. Disse pra ela ficar tranquila e que a gente se falaria mais tarde.

Depois disso eu fui sentindo meu corpo e ia percebendo a intensidade das contrações aumentarem. Alguma coisa vinha lentamente, mas tinha uma força diferente agindo em mim, uma agitação de água, de vida. Eu pensava na Clara e ficava feliz que a gente ia se ver logo, eu imaginava seu cheiro, sentir o calor, conhecer seu rosto, seu corpo. Fiquei sentada num sofá pensando em tudo isso.

Depois, mais caminhada com os cachorros, eram quase 16 horas.

Teve uma hora que bateu um desespero com a casa, a gente tinha acabado uma reforma há duas semanas e como achava que ainda tinha umas duas semanas  pela frente estava tudo uma bagunça. Eu fiquei triste que a Clara ia nascer numa casa assim e liguei para uma amiga querida, a Fê, minha maga das flores. Contei que a Clara ia nascer logo e que eu queria encher a casa de flores para receber minha filha, precisava de um lugar lindo, minha filha merecia beleza. Ela, que é sempre cheia de amor e generosidade disse para eu ficar tranquila, que ela ia providenciar as flores para mim e para a Clara.

Depois disso eu comecei a organizar as coisas (surto de parto). Pedi para o Marcelo passar num mercado e comprar comida para mim e para e equipe, e disse para ele passar na Telha Norte e comprar varão de cortina. Eu realmente achava que a gente ia conseguir organizar a casa durante o trabalho de parto.

Mais no final do dia as contrações começaram a pegar. O plano era avisar a minha mãe só depois que a Clara nascesse e portanto eu precisava sair da casa dela logo pra gente não se encontrar. No entanto, a Dona Fátima (uma senhora linda que trabalhava lá) insistia em fazer uma sopa pra mim, ela dizia que eu precisava comer bem para ter forças. Combinamos que eu ia tomar a sopa e que minha cunhada, a Valéria, ia me pegar e me levar pra casa enquanto o Marcelo ia no mercado e na Telha Norte, a gente se encontraria em casa.

Enquanto eu tomava a sopa minha mãe chegou, eu fiquei quieta, ia me encolhendo quando vinha uma contração, e dava umas colheradas nos intervalos. Me despedi da minha mãe e da Dona Fátima e fui pra casa. Lembro que estava trânsito, eu ia sentindo dor no carro.

Chegamos em casa e a Betina que estava saindo de um parto do São Luiz foi até lá me examinar, deixar o sonar e conversar um pouco. Eram umas 20 horas, ela fez um toque e disse que eu estava com 1cm de dilatação e que a Clara estava encaixadinha (lembro do sorriso dela me dizendo isso, linda). Combinamos que ela ia para casa tomar um banho descansar um pouco e que mais tarde viria, e que qualquer coisa eu ligaria. A Valéria foi embora e a gente ficou de avisar quando precisasse de ajuda, ou quando estivesse próximo do nascimento.

A partir desse momento a dor começou a pegar. Eu buscava posição tentando encontrar alivio, caminhava, agachava, apoiava no sofá de joelhos. Era uma noite fria, o Má acendeu a lareira, trouxe cobertor, almofada, edredon, montou um ninho pra mim na sala.....mas não era lá o meu ninho, eu corri para o banheiro, sentei na privada e lá fiquei.

A Carol e meu irmão chegaram e eu lembro que embora eu já não conseguisse conversar a presença deles me alegrou.

Eu fiquei na privada, fazia muito cocô, sentia dor, tomava chá, pedia para escutarem o coração da Clara, cronometrava as contrações, até que uma hora eu disse para o Marcelo que queria ir para o chuveiro.

Subimos, a Betina tinha deixado uma bola, mas eu me atrapalhava e ainda tinha que tomar cuidado com o ralo que a bola tampava fazendo subir a água, achei um saco e disse que não queria a bola, o Má trouxe pra mim uma cadeira bem baixinha, de plástico.

Eu estava no chuveiro quando senti algo diferente, um ploft. Comecei a gritar para o Marcelo que alguma coisa tinha acontecido, ele me perguntava o que e eu dizia que eu não sabia. Era um medo grande tomando conta de mim, até que eu entendi que a bolsa tinha rompido. Nessa hora eu fiquei em pânico e pedi chorando para ele ligar para a Betina. Ela disse que já estava a caminho, que já imaginava que eu estava precisando dela e que chegaria em minutos.

Lembro que ela chegou e veio conversar comigo. Disse que eu estava bem, que estava tudo dando certo, mas que eu tinha um longo caminho pela frente. O Má preparou uma cama pra ela descansar e a gente combinou que eu chamaria quando precisasse de ajuda.

Eu passei a madrugada toda no banheiro, na privada. Olhando para esse dia eu sei que fazer cocô é um processo natural do parto, mas me conhecendo, eu posso afirmar que eu cagava de medo, eu cagava todos os meus medos.

Sim, eu sou protagonista em diversas áreas e momentos da minha vida, e eu estava assumindo o nascimento da minha filha como um processo meu, também do meu marido pois eu estava parindo a sua filha, mas era acima de tudo meu.

Eu me coloquei nessa historia como protagonista, mas eu sabia o que isso me custava, eu inventava a coragem e a força que eu achava que não existia em mim. Eu duvidei de mim o tempo todo e dei a mão para o medo e para a solidão e passei com eles essa madrugada inteira. Cada contração que vinha era um mergulho em mim e eu tentava desesperada abrir caminho para minha filha dentro do meu corpo, dentro dessa escuridão em mim.

O parto é um momento que nos dá a dimensão exata da potência de um corpo e da vida, mas também traz a dimensão precisa da nossa solidão e da morte, aquele caminho só podia ser percorrido por mim e era só de mim que a Clara dependia. Parir era morrer um pouco, era transformar, era virar outra pessoa, conhecer a filha e a mãe.

Eram 6 da manhã quando eu pedi para chamarem a Betina. Ela veio pra perto de mim a gente se olhou e eu comecei a chorar. Ela me perguntou por que eu estava chorando e eu respondi que eu tinha medo de saber em que situação eu estava. Ela me respondeu que só esperava que meu colo estivesse bem fino e que se isso já tivesse acontecido estava tudo bem. Depois de me examinar ela me avisou que eu estava com 3 cm de dilatação e nesse momento eu desabei. Falei que eu não daria conta, que não estava dando.....Ela me olhou, disse que poderia me ajudar, mas que seria doloroso e que eu precisaria ajudar também. Nas contrações ela me ajudou a dilatar, doía e me trazia alguma esperança. Ela me avisou que eu tinha chegado em 6 cm e que dai pra frente a gente deixaria as coisas acontecerem naturalmente.

Foram momento difíceis, de dor e de cansaço, mas eu me lembro também de alegrias, boas conversas, muito cuidado e carinho comigo. Eu recebi tanto amor e apoio que sai do meu PD ainda mais confiante nas pessoas, eu sei o que pessoas comprometidas e amigas podem fazer, sei até onde elas vão por você.

E tinha o Marcelo lá, sempre do meu lado, me olhando, dizendo que eu estava indo bem, me dando apoio com seu corpo, com seu colo, com a sua presença. A gente se beijou, riu, eu chorei nos ombros dele, aquele homem que me via ali revirada, alterada, frágil e forte ao mesmo tempo me oferecia sempre um olhar de cumplicidade que eu nunca vou esquecer, eu lembro da alegria e da ansiedade que o olhar dele revelava.

Lá pelas 10h eu cheguei nos 10 cm. Eu me lembro de muitos momentos em que eu desistia e pedia ajuda, hospital, episio, anestesia, pancada na cabeça, qualquer coisa e eu queria muito parar de fazer cocô. Lembro muito também da Betina me incentivando, ela me olhava e dizia que era como se eu tivesse subindo uma montanha e que eu já estava chegando no topo. Lembro que cada vez que ela ouvia o coração da Clara, ela me olhava com um sorriso no rosto e dizia: Eita, menina. Minha menina estava lá dentro, forte, aguentando, me dando força, nascendo! Lembro dos carinhos do Má, do olhar de amor da Valéria, da postura forte da Carol, do mel, da torrada, do sorvete, dos chás, das luvas cheias de água que eles esquentavam no microondas e colocavam na minha barriga e na minha lombar. Lembro de uma massagem gostosa da Betina nas minhas costas, dos carinhos no meu rosto, dos abraços do Marcelo, da Valeria rezando comigo. Lembro da água no meu corpo, daquela barriga linda e amada que eu ia olhando e me despedido..

Teve uma hora que minha mãe ligou, a Betina estava de frente pra mim (eu estava num banquinho, dentro do box do banheiro) com o telefone na mão porque ela tinha acabado de ligar para o Cacá avisando para ele vir e ela atendeu. Lembro dela respondendo que eu não podia atender, que estava ocupada e aí minha mãe quis falar com todo mundo que estava na casa. O Marcelo convenceu minha mãe a não vir e disse que avisaria assim que a Clara nascesse.

As meninas tiveram um trabalho insano para encher a banheira (subindo panelas e baldes de água quente), eu entrei e achei horrível, sentia aquela marca de água que acabava na altura do meu peito e voltei correndo para o banquinho que me esperava no box.

Teve uma hora que eu virei para a Betina e falei que eu não ia fazer mais nada, que eu não tinha mais força e que não ia mais fazer força. Ela me olhou tranquila e me disse que tudo bem, que a Clara ia nascer se eu não fizesse nada, mas que ela precisaria de mais tempo para fazer isso sozinha. Aí eu pensei na minha filha nascendo sozinha, sem a minha ajuda, e percebi que ainda havia força em mim e que essa história era nossa, a gente precisava fazer isso junto, a gente se ajudava.

Quando a cabeça da Clara começou a aparecer a meninas vibravam, eu comemorava também, mas ao mesmo tempo eu sabia que havia algo muito importante para fazer e pensava: Essa menina precisa nascer, eu preciso tirar ela daí.

Minhas contrações eram curtas e irregulares, eu não tinha tempo para fazer força suficiente para empurrar a Clara, ela ficava indo e voltando no canal. De novo bateu o desespero e a Betina veio falar comigo. Ela disse que poderia me ajudar, mas que para isso precisaria me dar um pouco de ocitocina. Perguntou como eu me sentia em relação a isso e eu disse que topava qualquer coisa. Nosso combinado era que eu não queria nenhuma intervenção, eu tinha pedido muito para me ajudarem a não tomar anestesia, mas nesse momento eu realmente precisava de ajuda.

Talvez a partolândia me faça confusa, mas a lembrança que eu tenho é que logo depois disso a Clara nasceu em 3 contrações. Eu estava de cócoras no banquinho dentro do box, o Marcelo me dando apoio nas costas, a Betina no chão de frente para mim. Não consegui olhar enquanto a Clara nascia, eu só sentia.

Clara nasceu quieta, veio para os meus braços, eu senti aquele corpinho quente, aquele cheiro de vida, de milagre, de Deus, de natureza, era o cheiro do amor e eu nunca senti tanta vontade de proteger e de cuidar de alguém. Vi seu rosto e achei ela linda. Eu e o Marcelo chorávamos tanto, ela começou a chorar também e eu ia beijando seu corpinho, aninhando aquele bebê no meu colo. Nasceu a mãe, nasceu a filha, o pai, a família!

A Betina pediu para o Marcelo cortar o cordão, eu questionei. Ela respondeu que já tinha parado de pulsar e que tinha que me tirar dali por que eu estava sangrando. Entregaram a Clara para o Cacá e me carregaram para a minha cama.

Na cama, eu não conseguia expelir minha placenta e para dizer a verdade, eu não tentei. Depois do nascimento da Clara eu não tinha mais força e me entreguei numa atitude de submissão e cansaço, eu queria ser cuidada, eu queria que resolvessem aquilo por mim (exatamente o oposto do que eu queria viver) e não fiz absolutamente nada para tentar reverter esse quadro. Hoje sei que minha retenção de placenta está relacionada com tudo isso, sobretudo com o meu medo de terminar o parto, com a minha relação com a minha família e com a minha mãe, e também com a minha exaustão.

Fui para o hospital fazer uma curagem, fiquei longe da Clara por algumas horas (o que doeu horrores) e nos encontramos novamente às 23h num quarto de hospital, ela dormia lindamente.

Esse parto me doeu e me alegrou durante todo esse tempo, eu vivi um PD, fiquei rodeada de pessoas maravilhosas, minha filha nasceu num ambiente de amor e respeito. Mas eu também vivi a frustação do descontrole, do inesperado, e sobretudo, a dor de lidar com meus limites, de me conhecer e me enfrentar.

Hoje eu entendo que esse parto é igual a vida e é igual ao que eu sou,  sendo assim eu agradeço e aceito. E mais do que isso, eu celebro a vida da minha filha, as vitórias que eu alcancei, o parto que eu consegui realizar. Eu vi minha filha nascer, eu pari, a peguei no meu colo e senti o seu cheiro. Senti o cheiro da vida e do amor. Chegou o tempo de entendimento e de superação, tempo em que o corpo e a vida já chamam por mais vida. Viva a maternagem!

Para a Clara
Para o Marcelo
Para a Carol
Para a Betina
Para a Valéria
Para o PC
Para a Fê (que encheu o quarto do hospital e a minha casa de flores)
Para as maternas
Para a Ana Cris
Para a minha mãe

Com todo o amor e gratidão.

terça-feira, 13 de março de 2012

XVI - Qual é a próxima aula? - parte 2

Ele senta em sua carteira no fundo da classe, ainda sem lembrar o que está por vir. Os colegas começam a vasculhar suas mochilas e vão tirando uma tralha de dentro delas. A professora entra e ao vê-la o rosto do menino se ilumina: a próxima aula é de arte!

sexta-feira, 9 de março de 2012

XV - Qual é a próxima aula?

O menino corre atrás da bola quando escuta o sinal que anuncia o fim do recreio. Sua expressão quase que incontrolável é de indignação - mas já?! - enquanto ele continua correndo, em busca daquele chute que havia calculado. Mas não tem jeito, ele sabe que a professora não tolera atrasos...

Ainda ofegante, se dirige ao pátio, com as faces coradas, o cabelo molhado de suor e o uniforme encardido. Apesar disso - ou, melhor, por causa disso! - os olhos brilham e ele sorri largamente a cada colega que encontra.

Sempre há tempo para um gole d´água, que acaba transbordando para o rosto, escorrendo pelo pescoço e contribuindo para o desalinho das vestes.

Olhando pro chão, com a cabeça no jogo inconcluso, ele caminha pelo corredor em direção à sua sala e de repente se pergunta: "Qual é a próxima aula?".